arquivo público, 2022
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cômodo 3 - desenvolvimento do conflito
eu entrei na lauro müller de bicicleta em direção a beira rio e vi a janela do segundo andar da casa burghardt aberta esse era um ano que a casa ficava vazia e fechada então a janela estar aberta significava que não existia ninguém lá dentro para fechá-la então eu precisava voltar pra outra casa que é a minha casa e buscar a chave da casa burghardt para fechar a janela e no caminho pela hercílio pensei que se ela jogasse a chave pela janela do segundo andar da nossa casa eu economizaria o tempo de subir a escada atravessar a entrada e a sala ir até meu quarto pegar a chave que estava em cima da mesa eu ligo para ela e até o final da hercílio ela não me atende eu continuo ligando enquanto ultrapasso os corpos que perambulam na hercílio e quando chego na entrada da praça da matriz ela atende o celular eu digo eu estava indo lá pro lado da beira rio mas vi a janela do segundo andar da casa burghardt aberta e decidi voltar pra casa pra buscar a chave e fechar a janela você não pega a chave da casa burghardt em cima da minha mesa e joga pela janela da nossa casa por favor ela não entende responde o que? eu digo olhe pela janela eu estou aqui embaixo e a gente se olha pela janela com os celulares no rosto eu digo joga a chave da casa burghardt que está em cima da minha mesa joga pela janela daí eu não preciso subir pra buscar e tem esse homem que trabalha na casa brasileira do lado da nossa casa que fuma nessa entrada da garagem da construção do lado da nossa é nessa entrada de garagem que meu corpo segura a bicicleta e o celular é nessa entrada de garagem que eu estou parada olhando para ela no segundo andar com o celular no rosto e pedindo para ela jogar a chave pela janela então ele o cara da casa brasileira fumando diz que se jogar a chave e cair no chão pode quebrar o piso e se oferece pra tentar pegar a chave que ela jogará pela janela bom eu só quero a chave pra fechar a janela aberta da casa burghardt e poder ir pra outro canto que fica mais pra lá da beira rio e ele aquele da casa brasileira que fuma diz tudo isso já se posicionando embaixo da janela dela e não dá tempo de responder nada ela joga e ele pega e eu agradeço e sigo pela tijucas passando pela praça da matriz até entrar de novo na hercílio que em dia de semana fica movimentada e eu desvio dos corpos e olho para as placas dizendo que não pode andar de bicicleta na hercílio em dias de semana eu sempre penso que sou uma infratora quando pedalo na hercílio em dia de semana e uma vez um rapaz tentou me vender uma bala na hercílio gritando multa! multa! multa por andar de bicicleta na hercílio o preço é uma balinha e eu até comprei a bala porque na hora que gritou multa eu já sabia que eu era uma infratora ali naquele dia eu masquei a bala até o fim da hercílio mas no dia que eu estava indo pro lado da beira rio mas voltei para fechar a janela da casa burghardt eu não tinha balinha e na boca o gosto era de quem engole em seco a imagem de entrar sozinha na casa burghardt e a imagem de caminhar até o segundo andar para fechar a janela da casa burghardt eu nunca entrei sozinha na casa burghardt eu sempre estive naquele espaço em coletivo e se eu chegava primeiro ou antes eu esperava todos os outros chegarem para entrar na casa burghardt eu não acredito em coisas sobre-humanas mas eu acredito nos fantasmas da casa burghardt porque eles assombram a construção e os pensamentos dos que debatem políticas públicas para área de artes visuais na cidade na semana passada tinha tido umas tempestades de vento em itajaí e foi isso que provavelmente abriu a janela do segundo andar da casa burghardt o mato que cresce no portão lateral da casa já está quase chegando na maçaneta e era tipo setembro a corrente estava mais enferrujada mas o cadeado continuava brilhante e eu entro na casa burghardt e desativo o alarme quando criança eu tinha medo de escuro e em momentos em que me deparava com o tal eu cantava qualquer coisa que me viesse na cabeça e saia correndo teve uma época que eu cantava sobradinho do sá rodrix e guarabira e teve uma outra época que saia direto kawa no nagare no youni uma música japonesa que minha mãe sempre cantava no karaokê quando eu era pequena dessa vez eu entrei na casa burghardt era dia e não estava escuro mas eu comecei a cantar aaaa kawa no nagare no you ni odayaka ni kono mi o makasete itai que é algo como ‘aaa-ah como a correnteza do rio suavemente muitas eras vão passando’ no segundo andar o parafuso da tranca da janela estava solto e eu encaixo minha unha no relevo da cabeça do parafuso e rodo para prender a tranca novamente na janela enquanto uma fila de pessoas esperam pra poder entrar no cartório na frente da casa burghardt tem esse rapaz que fica olhando para mim e eu penso o que será que pensam essas pessoas na fila do cartório olhando para essa mulher na janela do segundo andar da casa burghardt aa-aah como a correnteza do rio suavemente muitas eras vão passando e eu continuo movendo meu dedo encaixado no parafuso em movimentos curtos o rapaz continua me olhando e eu continuo cantando será que quem para na fila do cartório da lauro muller que fica na frente da casa burghardt sabe das histórias de dona cachorrinha? será que alguém alguma vez já olhou para janela da casa burghardt enquanto eu estava lá e lembrou da dona cachorrinha? será que já me confundiram com uma assombração? até quem não conhece a casa burghardt quando olha pro seu corpo de concreto pensa que poderia estar mal assombrada e que essa mulher parada na janela do segundo andar de um prédio descascado é uma assombração mas ela usa uma camiseta do green day escrita basket case que tipo assombração usa uma camiseta do green day? os fantasmas que assombram a casa burghardt não usam camiseta do green day eles nem sequer possuem corpo pra usar uma camiseta eles pairam pelos cômodos vários em formato de poeira e descaso eles ficam por entre o veludo verde de mofo no canto superior da sala do segundo andar que desce quase que até a janela eles são as faixas amarelas e pretas da fita da porta ao lado da cozinha alertando que por ali não se deve ir porque pode sucumbir eles ficam embaixo dos panos que cobrem os enfeites de natal de itajaí armazenados na casa burghardt eles são as várias pás no chão que se olha não parece ser uma obra de arte doada para itajaí ou talvez pareça exatamente uma obra de arte doada para itajaí as pás jogadas no chão da casa burghardt estão nas asas de cupim aos milhares no chão estão nos observando do forro do terceiro andar naquela parte meio aberta que da aflição de olhar porque parece cena de filme de terror mesmo eles estão no ar condicionado caído no telhado e no buraco da janela traseira de um dos três cômodos do terceiro andar eles estão no andar pelos cantos dos cômodos com medo de pisar no meio e tudo ir abaixo os fantasmas da casa burghardt me assombram mais do que os de filme de terror e me fazem cantar essa música japonesa que eu canto quando estou com receio de algo ou quando não quero me sentir tão sozinha o rapaz da fila do cartório continua me olhando e eu fecho a janela do segundo andar da casa burghardt
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